domingo, 30 de janeiro de 2011

A MULHER APAIXONADA

Arthur da Távola


A mulher apaixonada é um ser em estado de torcida do Flamengo. Torce mais pelo amado que pela Seleção. Entra no campo, agride o juiz, salta o alambrado, topa qualquer desafio. Só vê vitória. O único ser que topa qualquer parada não é o herói, o desesperado ou o valente: é a mulher apaixonada. Vai pro exílio, larga profissão, conveniência, partido político. Só tem um caminho e uma verdade: o amor. O resto virá depois. Sem ele, o tudo é nada.

A mulher apaixonada é o mais paciente dos seres impacientes. Sempre em estado de “estou pronta”, suporta anos esperando com maravilhosa impaciência, exigência, dedicação, entrega, cegueira, vontade de quintais e praias, as amarrações que supõe perfeitas e definitivas. Ninguém vive a provisoriedade com tanto sentido de permanência. Ninguém assina em branco e antecipa tantos avais de afeto. Ninguém erra com tanta convicção e decência.

Fera e santa, guerreira e gato, desastrada e genial, capaz de usar fitas, meias coloridas, blusas-bobagem; uma campainha nos joelhos; uma joaninha de verdade na testa; de enfrentar solidões, distâncias, presenças, piratas e furacões pelo ser amado, a mulher apaixonada é o mais regular dos seres irregulares, porque não julga, não pensa, não avalia, só sente.

E que se danem o mundo, as regras, as regulações, conveniências, aparências, seguranças, convenções, disposições, legislações e tudo aquilo que mamãe me ensinou! Que o mundo exploda em flores!
Ser de grandezas, só vive de migalhas. Ser de farturas, alimenta-se de ar, nuvem, vontade, espera e sonho. Quem se supõe apaixonada e trocar uma nuvem por um sanduíche está é com fome, não com paixão. Está doente de saúde e não saudável de doença de amor.

A mulher apaixonada é um ser em estado de entendimento de pedaços da vida desconhecidos pelo comum dos mortais: entende de lençóis iluminados pela luz do corredor nas noites sem sono, conhece ruídos diferentes de tique-taques, entende de meio-fio, de paredes chutadas, de cantores e poetas escolhidos secretamente, de confidências contadas para as toalhas.

Domina computadores afetivos encarregados de arquivar e interpretar as mensagens mais sutis do amado: tom de voz, espaço entre uma e outra frase, fomes dominicais, impressões vagas de cansaço, tédio, alegria ou saudade expressas por fungados, suspiros, desabafos, interjeições, gestos, sons, olhares, todos tabulados no seu “compoetador”, perfurado pela esperança e perfumado pela possibilidade.

A mulher apaixonada mistura bola de gude com Heidegger; borboleta com suco de pitanga; laquê com desejo; talão de pedágio com metafísica; sapato de tênis com Brahms; sanduíches de mortadela com informática; distração com rejeição; perturba-se de tanta lucidez; tolda- se de tanta nitidez; mancha-se de tanta pureza; confunde-se de tanto autoconhecimento; engana-se de tanta verdade; embaraça-se de tanta decisão; entendia-se de tanta disposição.

Ela mistura disposição com vontade. Possibilidade com ânsia. Dificuldade com não querer. Em suma: é o mais incapaz dos capazes do que há de melhor, mais lindo, legítimo e verdadeiro.

A mulher apaixonada vive de farol alto, não desliga a buzina, não fecha bico de gás, só anda de pé da tábua, ouve tudo em 78 rotações, força a barra, anda na contramão, joga pedra no telhado do vizinho, vai depressa com o andor, desassossega o leão, cutuca a fera com vara curta, gasta pólvora com chimango, perde tempo, ganha o sonho, vive o susto, varre o medo, enfrenta a frota, esmaga o espanto, esbarra no afago, espera a vida, encontra a razão, fala de boca cheia, assovia e chupa cana, beija a madrugada, insulta a acomodação, instala o reino da validade.

Ela é: especialista em pretextos, modista de oportunidades, cozinheira de chances, pediatra de carências, jardineira de manhãs, pastora de indícios, navegante de esperanças, fiandeira de frustrações, colhedeira de instantes, tecelã de ternuras, miúra de girassóis, doceira de amarguras.

A mulher apaixonada é furacão e chuvisco; exaltação e placidez, adivinha e alienada, sábia e patusca, maravilha e susto, mãe e mulher, filha e bruxa, santa e desastrada. A mulher apaixonada é, em suma, o ser que atende e representa em profundidade, em delírio, em sofrimento e em glória, a criança carente que mora em nós.

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