Judas Isgorogota
Era órfã e infeliz. Tinha o pesar profundo
De ser só, de não ter, como as outras meninas,
O carinho, a atenção, o desvelo dos pais.
Sofria por saber que, sozinha no mundo,
Ela, que havia tido a mais negra das sinas,
Deste mundo de dor nada esperava mais...
Mas, ouvindo, por fim, a fervorosa prece
Que altas horas da noite entre prantos brotava
Daquele ingênuo coração,
O Senhor a atendeu. E eis que um dia aparece
Um casal que de há muito desejava
Uma menina assim, para sua afeição.
E ela foi a sorrir, ela que não sorria...
A mansão do casal era toda cercada
De um mimoso jardim.
Seus vestidos agora eram lindos. Dir-se-ia
Que a andrajosa infeliz se transmudara em fada
E que a sua desdita, enfim, tivera um fim...
Não tivera, porém. Há três anos
Que ela era na escola a estudante pior.
Entanto, ela fazia esforços sobre-humanos
Para ao menos dizer uma frase de cor...
A memória, porém, só lhe causava danos
E era aquilo, afinal, sua mágoa maior...
Uma noite, o casal lhe disse: "Temos pena
De lembrar que você já não é tão pequena,
Que precisa estudar...
Pois, se perder este ano, é coisa resolvida,
Você vai passar a sua vida
Na copa, a trabalhar."
Aquela repreensão como um punhal lhe doía.
Tendo a alma a afogar-se em pranto, noite e dia
Aos livros a sem-sorte inda mais se aplicou.
Não, não queria ser uma simples copeira,
Ela que, pobrezinha, a sua infância inteira
Entre angústias passou...
Dezembro. A criançada. Antegozando as férias,
Mui longe de pensar nessas coisas tão sérias
Que a vida nos impõe quando a idade já vem,
Corre aos exames, rindo a criançada...
E no meio daquela revoada
Com um riso triste e bom, a órfão sorri também...
A escola é nesse dia um ninho delicioso,
Forrado de jasmins, de palmas e florões.
E a voz do mestre é a voz de um Todo-poderoso
Que as almas infantis enche de comoções...
Chega a vez da orfãzinha. É agora a vez terceira
Que se senta naquela humílima cadeira
Tal como se sentasse em um banco de réu...
Fala o mestre o seu nome, ao que ela diz: "Presente!"
Mas, o corpo era só que estava ali...realmente,
A sua alma vagava, entre os anjos, no céu...
O mestre a conhecia: era uma retardada
Mental, um caso à parte, e mister se fazia
Que com amor procedesse à mais leve argüição.
Dentre todas talvez fosse a mais aplicada...
Mas a idéia faltava...o cérebro dormia...
E a memória vivia em profunda inação.
-"Minha filha, você sabe perfeitamente
O que é "substantivo": a palavra que indica
Um animal, um ente,
Uma coisa ou pessoa, ou mesmo uma ilusão...
Por exemplo, você, o seu nome, "Lilica";
"Palácio", "Deus", "Amor", "Jornal", "Antônio"...
"Demônio" é um ser também, muito embora "Demônio"
Somente exista na imaginação..."
-"Muito bem, - prosseguiu o mestre. Estou contente.
Agora, diga o que é "substantivo abstrato"...
Diga...Lembre-se bem...coisa mais fácil não há...
Substantivo abstrato...uma coisa em que a gente
Ouve sempre falar mas não viu, de fato,
Nunca viu nem verá..."
-"Vamos... Só um exemplo, e eu fico satisfeito...
Substantivo abstrato...um entre sobre-humano,
Um ser a cujo canto alma alguma resiste,
Mas que não passa de ilusão...
Um sentimento bom que vive em nosso peito...
Uma coisa que o mundo inteiro diz que existe
E entretanto jamais a tivemos à mão..."
Nesse instante, uma luz brilhou nos olhos pequeninos
Da orfãzinha infeliz; e eis que, rasgando o denso
Nevoeiro, a idéia acorda em lampejos divinos,
A memória reluz como uma estranha vela;
Inicia a razão sua marcha triunfal,
E o cérebro, por fim, despertando daquela
Sonolência fatal,
Começa a funcionar com um dínamo imenso!
-"Mestre...mestre...eu já sei!" – grita a coitada como
Temendo que a razão se apagasse outra vez.
E aos brados, a chorar, num doloroso assomo,
Grita como uma douda
Que quisesse dizer a sua angústia toda
Naquele instante só de estranha lucidez!
- "Mestre, eu sei o que é! Se há uma coisa, em verdade,
Que o mundo inteiro diz que existe e que ninguém
Conseguiu ver jamais, nem a sentiu também,
Essa coisa só pode ser "Felicidade"!
Felicidade é coisa que não tem"!